domingo, 23 de abril de 2023

quinta-feira, 13 de abril de 2023

o Dilema de Letícia

 


                 O dilema de Letícia

 

O pátio da escola fervilhava. Escondida atrás do banheiro das meninas, Letícia não queria juntar-se às colegas que a chamavam aos gritos:

—Letícia... Letícia! Estamos aqui. Vem conversar conosco!

Letícia se fazia de surda. 

Desde que haviam se mudado de uma cidade pequena do interior para a cidade grande, ir à escola havia se tornado um verdadeiro suplício para Letícia. Estava insegura. Não se sentia parte daquele grupo de meninas despreocupadas e felizes. Era escorregadia. Um peixe fora d’água naquele novo ambiente; sentia-se perdida, diferente das meninas da cidade grande.

            Em sua casa, as coisas também não andavam nada bem. A adaptação também não estava sendo fácil para eles. Família grande. Muitas bocas para comer e poucas para prover. Não tinha uma “mesada”, como as outras alunas para comprar seus próprios lanches. Levava o seu de casa, quando podia e quando tinha. Uma merenda simples. A hora do lanche era uma tortura.

— Vem Letícia. Vem lanchar com a gente. Chamavam as colegas com simpatia quando a viram aproximar-se.

— Obrigada meninas, mas não estou com fome —, respondia morrendo de medo que as colegas ouvissem o barulho que sua barriga fazia.

— Estamos te achando triste, Letícia. O que está acontecendo contigo? Conta pra gente.

— Não é nada. Estou bem, acreditem.

Letícia  respondia com evasivas. Sabia que as colegas gostavam dela, mas não conseguia conversar normalmente. Não conseguia se sentir parte delas principalmente neste dia que era o pior de sua vida.  Vivia um pesadelo. Havia saído de casa para a escola vestindo uma roupa de baixo feita em casa por sua mãe. O elástico, já muito gasto pelo uso, havia se soltado e não havia como consertá-lo mais uma vez. Aquele elástico tinha chegado ao fim dos seus dias e Letícia não sabia como contornar aquela situação tão desesperadora. Saíra do banheiro para o pátio desnorteada. Jamais contaria para elas.

O que vou fazer? Perguntava-se completamente alheia às partes de conversas despreocupadas que ouvia.  Como vou sair daqui sem calcinha! Será que as pessoas vão perceber algo estranho em mim. Lembrou-se da decisão que tomou de enrolar a calcinha em um papel e jogá-la no lixo, na esperança de que nunca, jamais fosse encontrada por alguém —, e se todos perceberem que estou sem minhas roupas íntimas? Para ela o olhar das pessoas penetrava através da farda e ela se tornava transparente aos seus olhos.

— Vamos Letícia. Fala alguma coisa. Você está muito calada hoje, e você não é assim.  Vamos passear no centro da cidade depois da aula? — Perguntavam eufóricas já visualizando os prazeres da aventura.

— Não sei, vamos ver. Vou pensar. —  Letícia sabia muito bem que não as acompanharia.

Um som estridente se fez ouvir. Pernas corriam por todos os lados. Salas se enchiam novamente.

Quem perdeu essa calcinha? — Letícia voltou a si. Estava tão imersa em pensamentos que achou que tinha ouvido a voz de alguém. Estava com os nervos à flor da pele. Se sentia péssima. Era só a sirene tocando. Acabara o intervalo.

A volta para casa não saía de sua cabeça. Como atravessar aquela ponte com aquele vento? Como passar por ali, quando se estava como ela, sem as roupas de baixo?

            E se eu não conseguir segurar os livros e a saia ao mesmo tempo? E se o vento me deixar nua em plena ponte? O que será de mim? Que vergonha”!  Estes pensament

os tomaram conta da mente dela durante todo o resto das aulas naquele fatídico dia.

Mais um toque estridente.  A aula acabou. E agora?  Letícia suspira profundamente.

Despediu-se das colegas. Claro que não aceitou o convite de ir com elas para o centro da cidade. — Olhar vitrines!  Letícia contrai os lábios e balança a cabeça tristemente. Deixou que as colegas se distanciassem um pouco e depois saiu sozinha na companhia apenas de seus pensamentos e de suas desventuras.

Caminhava cabisbaixa, sentindo nas costas o peso das suas preocupações. Venceu com dificuldades as correntes de ar da velha ponte, fazendo um esforço enorme para segurar as saias e os livros ao mesmo tempo. No centro da cidade, a visão de uma loja de roupas íntimas, bem ali, a sua frente, levou-a a pensar coisas que em outras circunstâncias jamais teria pensado. Uma ideia surgia em sua mente.

 Aquela imagem era um convite à loucura que passava em seu cérebro. 

             Armou-se de coragem. Entrou na loja. Olhava em todas as direções. Escolheu várias calcinhas. Sabia muito bem que não tinha nenhum dinheiro para comprar nenhuma delas. Concentrou-se no seu plano. Tremendo como uma vara verde, se esquivando entre as vendedoras, deu um jeito de esconder uma delas atrás dos livros que carregava de encontro ao corpo.

             Não sabia o que seria mais degradante, ser descoberta nua andando pelas ruas, ou ser levada presa para uma delegacia de menores por roubar roupas íntimas em uma loja de lingerie.  Saiu sorrateira da loja, sondando e espreitando para ver se alguém a havia seguido. Entrou e saiu sem ser percebida.

 Entrou em uma lanchonete. Pediu para ir ao banheiro sob o olhar enviesado de um dos garçons. Sozinha e em segurança; sem pestanejar, vestiu rapidamente a sua primeira calcinha de renda.  Soltou o ar que estava preso nos pulmões. Agora sim; posso respirar com facilidade. — Pensou aliviada.  O medo já não a consumia. Esvaiu-se como bolinhas de sabão ao vento

O que importava é que estou vestida.

Saiu da lanchonete com a cabeça erguida. Já não tremia mais. Um gato preto atravessou o seu caminho e se enroscou nas suas pernas. Quase a faz cair. Ela o chutou sem pena. Não era supersticiosa. Na calçada, nariz empinado, olha para um lado e outro; avista o gato preto que ao vê-la se esconde rapidamente. Ajeita os livros nos braços, e segura-os de encontro ao peito como para se proteger do mundo.

 

 

         

 

 

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Sobre Mulheres

 

 


 SOBRE  MULHERES              

Pois então, como o próprio título diz, este texto fala sobre mulheres. E quando penso em escrever sobre mulheres, logo me vem à cabeça flashes de conversas com amigas, com irmãs; notícias a respeito de feminicídios, violência contra a mulher, desfiles de moda, entrevistas com mulheres. Enfim, uma parafernália de ideias que além de me deixar indignada me faz ver também que ser mulher nunca foi e parece que nunca será fácil, desde os primórdios até a contemporaneidade ser mulher não é mole não.

Gostaria de falar sobre a mulher em seus mais variados aspectos, morais, sociais, políticos, raciais, profissionais e individuais, mas pensando bem, esse texto ficaria muito chato, uma vez que esses aspectos já foram bastante explorados, por isso quero mostrar minhas ideias e impressões a respeito do “ser mulher” de uma maneira mais descontraída, mais leve. A vida da mulher já é tão complicada, não é?

Parafraseando Martinho da vila, a gente sabe que “existem mulheres de todos os tipos, de todas as cores, de todas as idades, de muitos amores; casadas carentes, solteiras felizes” contudo, o que importa é que ser mulher muitas vezes é ser luz no fim de um túnel quando tudo parece perdido. Ser mulher é se fazer respeitar, independentemente, de sua raça, classe social ou aparência física, simples assim. Ser mulher é ter sensibilidade para entender e aceitar os desafios que surgem em sua vida a todo o momento e conseguir superar e vencer todos eles.

            Sou uma mulher altamente curiosa, autocrítica por natureza, bastante observadora, às vezes preconceituosa, sim, mas, quem não é; e que prefere ver e ouvir, a falar, e eu as escuto no dia a dia, nas filas de padaria, na TV, nos Jornais, nas filas de banco, de supermercado e shoppings e nos encontros com amigas e colegas a respeito do que é: ser mulher. Temas como: o casamento, filhos, violência, trabalho, saúde, beleza, moda, ninho vazio, menopausa, libido, velhice e por aí vai..., certamente, é do que mais falamos.

Neste momento em frente ao computador, fico pensando em quantas mulheres, independente de raça, de situação financeira, de opção sexual, casadas ou solteiras, felizes ou infelizes, mães ou não, que por ventura cheguem a ler esse texto, poderão concordar ou não comigo sobre suas inquietações quanto ao que estamos fazendo com o tempo que nos é dado viver e nos transformar, já que viver é um transformar-se sempre.

Será que estamos nos transformando? Será que um dia nossas filhas e netas conseguirão ter uma vida melhor que a nossa? Será que conseguirão atingir seus objetivos sem as pressões, os tabus e os preconceitos que passamos a vida tentando quebrar? Sendo uma mulher do meu tempo procuro escrever sobre nossas dores e perplexidades, nossas tradições e costumes, nossas grandezas e fragilidades; frustrações, tempo, beleza, empoderamento, casamento, trabalho, filhos, vida, morte tentando vivenciar e compartilhar as alegrias e tristezas com as quais todas nós convivemos.

 Estamos num tempo de falar, de reclamar, de termos vez e voz, e, principalmente, não ter medo. Chega de violência contra a mulher, de feminicídio — essa palavra nova e tão repetida atualmente. Chega de discriminação profissional – a mulher deve ou não ganhar mais que os homens? Somos mais fortes ou mais fracas?  Claro que somos mais fracas. Quem vai discutir isso? É de nossa natureza e o homem sempre será o mais forte, fisicamente, bem entendido. Se pensarmos sob essa ótica, poderemos até nos considerar “inferiores” ou “sexo frágil”, como estamos acostumadas a ouvir. No entanto, talvez, estes não sejam os termos apropriados. Eu diria que somos sim, singulares, diferentes. Jamais frágeis ou inferiores.

Chega de discriminação racial. Será que “espicho” meu cabelo deixando-o bem lisinho como o das atrizes ou deixo black-power? Francamente. Quem aguenta mais isso? Chega de regras! Do que posso ou não falar. Do que posso ou não vestir. “Não, mas do jeito que ela está vestida tá pedindo pra ser estuprada”, dirão alguns.

Chega de se olhar o corpo da mulher como um produto! De como devemos nos comportar “fale baixo, não cruze demais as pernas, sua saia tá muito curta, Não rebole muito os quadris ao andar; sorria baixo”, não beba álcool nas festas. Chega de disso! Chega de violência e aliciamento sexual, de estupro coletivo! Vamos ser “sem-vergonhas”. Vamos denunciar estes machistas estupradores que ainda pensam que as mulheres nasceram para servirem de depósito de sêmen para eles. Está na hora de reagirmos. Afinal, a “culpa” não é nossa se muitos homens se mostram mais irracionais do que racionais.  O tempo de perder-se e limitar-se já passou. Estamos em um tempo que nos permite fazer melhores escolhas para crescer e acumular. Nada é mais como no passado.

Hoje, somos autoras de boa parte de nossas escolhas e omissões, audácia ou acomodações, mas, em contrapartida, temos de nos sentir responsáveis pelo de bom ou de ruim que nos possa acontecer. Temos de ter a consciência de que jamais seremos poupadas dos acasos brutais que nos roubam amores, nos roubam pessoas, nos roubam saúde, emprego, segurança e ideais.

Estamos sempre em processo de transição, de transformação, e, enquanto estivermos no mundo, teremos de procurar viver a vida como ela se nos apresenta da melhor forma possível.

Mas não podemos prescindir jamais de uma coisa: da eterna busca da felicidade, isso: é SER MULHER.

                                         Valéria Vanda Xavier Nunes – Escritora

                                          @Valeriaxavier_autora